Olavo de Carvalho
Numa carta enviada a José Sarney em 15 de abril de 1985, José Guilherme Merquior aconselhava ao então presidente fazer "desde já certos gestos simpáticos à esquerda" especialmente "reatar relações com Cuba. Eles [os esquerdistas] ficariam meio ano digerindo este pitéu, obrigados a achar que 'pô, esse Sarney até que não é assim tão reaça...'." (v. José Mário Pereira, "O Fenômeno Merquior" , em http://www.olavodecarvalho.org /convidados/0122.htm ).
A esquerda é a única força política organizada do continente; a direita é covarde.
Explicando as razões dessa idéia que deve ter lhe parecido tão genial quanto ao destinatário da mensagem, o autor de A Astúcia da Mímesis ponderava:
"Cuba hoje não oferece maiores perigos na América do Sul. O guevarismo já era. E o reatamento tem pelo menos três vantagens para nós: a) abriria um significativo potencial de exportações brasileiras; b) permitiria ao Brasil influir, em boa medida, na conduta internacional de Havana, como faz o México, em sentido moderador e realista; c) evitaria que, no futuro, nosso reatamento se desse a reboque de uma reconciliação diplomática Cuba-USA, reconciliação essa, a médio prazo, tão certa quanto o foi o reconhecimento de Pequim por Washington na década passada."
Se houvesse um concurso mundial de previsões erradas, esse parágrafo não perderia nem para os prognósticos do ministro iraquiano Mohammed al-Sahaf quanto ao futuro glorioso de Saddam Hussein.
Por si só, ele explica por que José Guilherme Merquior, depois de morto, se tornou o direitista predileto da esquerda brasileira. Seus livros não exerceram nela grande influência. Não consta que algum esquerdista tenha abjurado da admiração por Michel Foucault por ler O Niilismo de Cátedra , nem aderido, exceto por fingimento tático, ao triunfalismo liberal de A Natureza do Processo .
Em compensação, essas breves palavras dirigidas a um presidente da República deixaram marcas duradouras. Sarney não só pôs em prática a sugestão de reatar as relações do Brasil com Cuba já no ano seguinte, mas, no doce embalo da morte do guevarismo, mandou tirar a disciplina "Guerra Revolucionária" do currículo das escolas militares, deixando duas gerações de oficiais brasileiros desaparelhadas para lidar com a expansão subversiva nas décadas seguintes.
Para a esquerda, foi realmente um pitéu em dose dupla. Para o Brasil, vejamos:
a ) Do total das exportações brasileiras, Cuba compra não mais de 0,2 por cento (dados de 2005; v. http://www.apexbrasil.com.br /media/cuba.pdf ).
b ) O Brasil não influencia em nada a política cubana, mas Cuba, através do Foro de São Paulo , determina e orienta a política de vários países da América Latina, entre os quais o Brasil.
c ) A reconciliação entre EUA e Cuba, anunciada como inevitável, simplesmente não aconteceu.
d ) Quanto ao falecido "guevarismo", é o cadáver mais enérgico que já se viu. Hoje em dia a esquerda é praticamente a única força política organizada do continente, amparada no narcotráfico, no apoio da mídia internacional, na ajuda das fundações bilionárias e no poder bélico das Farc. É, aliás, muito mais eficazmente coordenada pelo Foro de São Paulo do que jamais o foi pela velha Organização de Solidariedade Latino-Americana (OLAS). Em comparação com isso, as guerrilhas dos anos 60-70 parecem escaramuças de crianças.
Poucos políticos de esquerda podem se gabar de haver contribuído tanto para criar essa diferença quanto a dupla Merquior-Sarney. No entanto, uma coisa continua imutável: na "direita" brasileira ainda predominam os que acreditam antes em ilusões animadoras do que em diagnósticos realistas. É uma gente doente e covarde, que paga para ser enganada.
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