quinta-feira, 4 de outubro de 2007

O golpe já começou

João Ubaldo Ribeiro
O Globo
16/Set/2007

Vocês vejam como, em volteios e ironias, a vida nos dá constantes lições de humildade. Faz poucas semanas, argumentei aqui que não havia golpismo nenhum no Brasil, a não ser numa cabeça desvairada ou outra. Gira o mundo, passam os dias, e agora me encontro na obrigação de engolir minhas palavras.

Fosse lá no bom sertão de onde vem o dr. Renan Calheiros, talvez um coronel me obrigasse a literalmente comer o jornal, como é de veneranda tradição regional. Pois não é que, num relampejo deflagrado pela Providência, numa reprodução modestíssima do estalo de Vieira, acaba de me aparecer com grande vividez toda a verdade, em sua nudez tão clara quanto imunda? Mas é óbvio que há golpismo, como asseveram os governistas. Mais que isso, o golpe já está se desenrolando, com uma sorte e uma maestria sem rivais.

Só que o pessoal, o que, nas circunstâncias, é perfeitamente desculpável e compreensível, esqueceu de falar que o golpe não vem do lado de cá, dos descontentes como eu e muitos outros, até mesmo a odiosa Zelite, que, aliás, vai se dar bem como sempre, golpe ou não golpe. O golpe é do governo mesmo. Sei que com esta afirmação me arriscaria a ser acusado de calúnia. Mas não é calúnia, porque está tudo tão bem feitinho, tão arrumadinho, vai ser tudo tão dentro da lei e do apoio popular, que, ao dizer que o governo está dando o golpe, não o estou — o que caracterizaria calúnia — acusando de crime, estou é achando esse pessoal sabido que é danado.

Jornal é lido por gente de todo tipo e me desculpo com aqueles que já sabem o que vou resumir simplificadissimamente. O Brasil tem um sistema bicameral, a Câmara de Deputados e o Senado Federal. A Câmara representa a população e, portanto, os Estados mais populosos têm mais deputados. Para evitar que esses Estados dominem inteiramente os minoritários, o Senado tem um número igual de membros para cada Estado. E cumpre funções importantíssimas em nosso sistema. Entretanto, o dr. Berzoini, outro dia, praticamente declarou como projeto do PT a extinção do Senado. Sendo a cabeça do PT em São Paulo, a coisa ficaria muito facilitada, se não houvesse Senado.

Agora, num julgamento que se pode rotular de clandestino, malocados como bandidos numa cafua em que a atmosfera mais se assimilava a uma reunião da Cosa Nostra com direito a porrada na entrada, os senadores, escondidos do povo que desrespeitam, envergonham, enganam, furtam (ponham aí o “raras exceções” de praxe, por favor, pois cá me impede momentaneamente a náusea) e atraiçoam, os senadores decidiram votar contra as convicções de praticamente toda a nação. Ou seja, a esmagadora maioria do povo brasileiro, tenho certeza, considera hoje o Senado não mais que uma furna de parasitas, larápios incompetentes, negociantes da honra, hipócritas inexcedíveis, aproveitadores descarados e uma despesa desnecessária para o país.

O Senado, finalmente, conseguiu firmar seu processo de putrificação e assim cumpre sua parte no golpe. Tenho certeza de que, se não a maioria, parte muito significativa do povo brasileiro votaria ou sairia à rua pela extinção do Senado. Portanto, ele está cumprindo muito bem seu papel no golpe, esforçando-se ao máximo para mostrar que só serve para atrapalhar e vai continuar a atrapalhar, envolvido em processos e dissensões, para daqui a pouco o presidente dizer, com geral concordância pública, que o Senado não o deixa governar. Dá-se um jeito, perfeitamente legal e com feroz apoio popular, de acabar com o Senado.

Depois, acabar com a Câmara de Deputados é mole. Sabe qualquer um que, se cuspir no chão fosse hábito brasileiro para expressar desprezo e repulsa, nadaríamos num mar de saliva, pois seria o que aconteceria sempre que se falasse em deputado e senador. Na nossa História recente, a Câmara tem empreendido uma campanha sem quartel para tornar “deputado” e “político” xingamentos desses de reagir com um murro na cara e um processo por difamação e injúria. O povo despreza todos eles com equanimidade (botem as raras exceções outra vez, é só para não me prenderem com muita facilidade — já basta que o responsável por tudo o que estou atacando sou eu mesmo, como integrante da famigerada mídia) e muita gente tem de tomar um antiemético quando um deles aparece na TV. Transforma-se (é fácil, é só dar um empreguinho aqui, uma graninha lá, uma garota de programa acolá) a atual Câmara numa Assembléia Constituinte e se aprova-se uma nova Constituição de truz. Nem é preciso trabalhar muito, porque a de 37 está aí mesmo, para ser copiada ou servir de modelo, retiradas as partes mais progressistas. A admiração do presidente Lula por Getúlio Vargas vai ficar bem mais fervorosa.

Renan Calheiros, à custa de enorme desgaste pessoal, desempenhou e certamente desempenhará bravamente sua parte (não a sua parte em dinheiro, que nada disso está provado e é por fora — tirem esse bicho daí!). Está quase tudo feito para se demonstrar cabalmente que tanto o Senado Federal quanto a Câmara de Deputados são desnecessários e mesmo perniciosos, simulacros descartáveis de verdadeiras instituições democráticas. Creio que a maioria dos senadores e deputados continuará colaborando, tendo à proa o brioso senador Aloísio Mercadante (que falou por si e assim sacrificou a biografia pela causa, pois, como se ment..., quer dizer, como se sabe, o PT liberou os votos de todos os seus membros) e aquela outra cujo nome ora me escapa, uma que sempre me lembra uma recepcionista de gafieira com problemas sintáticos.

E finalizo com um elogio aos antigos e à sabedoria que atravessa os séculos. Tudo isso me veio à mente quando me fiz a velha pergunta romana, que tantos eventos já esclareceu: Cui prodest? — a quem aproveita? A mim, no momento, só me ocorre um Grande Aproveitador. A vocês ocorre quem?

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