quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Multiplicando a pobreza

Carlos Alberto Sardenberg
jornalista, comentarista econômico e âncora do programa CBN Brasil
O Estado de S. Paulo, em 29 de janeiro de 2007

O Jornal da Globo do último dia 23 mostrou ao País uma personagem e uma situação que exigem cuidadosa reflexão sobre como estão funcionando, ou não, os programas sociais.

Reflexão difícil. Avaliar uma política de governo requer cálculos para medir sua eficácia e verificar se o dinheiro público está sendo aplicado corretamente. Mas é difícil fazer contas quando se encontram pessoas lidando com a pobreza no seu dia-a-dia.

O repórter José Raimundo encontrou, no Recôncavo Baiano, Joselí Sacerdote: mulher, 27 anos, nove filhos. Situação triste, mas, infelizmente, até bastante comum em diversas regiões brasileiras. O incomum aparece em seguida: Joselí, que está grávida do décimo filho, tem casa própria, inteiramente construída com o dinheiro do salário-maternidade.

Sim, é isso mesmo: ela tem filhos para receber o auxílio-maternidade, sua principal fonte de renda.

Como se chegou a isso?

A Previdência paga o auxílio. A trabalhadora rural só precisa provar que mora e trabalha na roça. Pode requerer o benefício a partir do oitavo mês de gravidez e até a criança completar cinco anos. Neste caso, a beneficiária recebe o pagamento dos “atrasados” de uma só vez. Valor total do benefício, para as trabalhadoras rurais: quatro salários mínimos por gravidez. Em dinheiro de hoje, R$ 1.400.

Dos nove filhos, Joselí já recebeu o benefício referente aos sete primeiros. Tem direito a mais três, por dois já nascidos e pela gravidez. Se esperar mais um pouco, já pegará o novo mínimo, elevando o valor total para R$ 1.520 por filho, ou R$ 4.560 no total, um dinheirão no Recôncavo Baiano.

Ela faz uma espécie de poupança para receber três de cada vez. Acumulado, esse dinheiro já lhe permitiu comprar o material e levantar a casa em que vive. Uma casa de dois quartos (o do casal e o das crianças), mais sala-cozinha, de alvenaria e telhas. Para a região, um triunfo familiar.

Numa primeira abordagem lógica, parece que tudo está funcionando. Dizem os economistas que as pessoas agem racionalmente e sabem avaliar corretamente as relações custo/benefício em que se envolvem diariamente.

Joselí age assim. Qual a renda que pode tirar de seu trabalho rural? Por volta dos R$ 100 ao mês, um pouco mais, um pouco menos. Em nenhuma hipótese, portanto, conseguiria juntar os R$ 4.560, que é quanto vai receber pelos três filhos cujos benefícios ainda não solicitou, se esperar pelo novo mínimo de R$ 380.

Mais ainda: considerando esse valor, o benefício total de R$ 1.520 em um ano equivale a uma renda mensal de R$ 126, um pouco mais do que Joselí conseguiria trabalhando na roça. No limite, portanto, não trabalhar e ter um filho por ano é a opção mais racional.

Joselí ainda faz a coisa certa quando, tendo alguma outra renda em casa, deixa “acumular” filhos para requerer três benefícios de uma vez. Ela aproveita, assim, os aumentos anuais do salário mínimo sempre acima da inflação. Está capitalizando sua poupança com “juros” reais bastante remuneradores. De novo toma a opção econômica mais racional.

Mais ainda: as imagens do Jornal da Globo mostraram que Joselí não gastou o dinheiro com futilidades. Ela e as crianças aparecem vestidas com roupas muito pobres, não se vê nada de extravagante ali. Ela levantou a casa, deu um teto para sua família. De quebra, movimentou a indústria e o comércio de material de construção.

Joselí Sacerdote não é uma aproveitadora. É uma heroína brasileira. Ou alguém acha que uma mulher opta alegremente por ter um filho por ano?

Conclusão: está tudo muito errado. Se a melhor opção para uma mulher pobre é ter um filho por ano, isso quer dizer que deu tudo errado, no plano individual e no social.

Joselí está tornando sua pobreza permanente e multiplicando a pobreza com seus filhos. Sua estratégia tem limites: a um determinado momento, as necessidades dos filhos, em número cada vez maior, serão superiores aos ganhos obtidos com cada gravidez. E ela cairá no pior dos mundos: com um monte de filhos e sem renda para cuidar deles.

Além disso, sua saúde provavelmente vai falhar. Até quando ela poderá seguir tendo um filho por ano? Mesmo considerando a hipótese terrível de que ela pode levar sua estratégia por mais uns cinco anos, até que filhas em idade de procriar a substituam nessa roleta, estamos diante de uma desesperada tragédia familiar. Num determinado ponto mais à frente, haverá uma enorme família mais pobre que a de hoje

. Termina em desesperança.

Do ponto de vista de políticas públicas, o resultado é o pior possível. Programas sociais destinam-se a tirar as pessoas da pobreza. Estes não apenas mantêm a pobreza no médio prazo, como a multiplicam. Estimulam o crescimento demográfico em meio a uma pobreza crescente.

Programas de distribuição de renda devem criar incentivos para que as pessoas escapem da pobreza. São gastos que o governo faz para aliviar de imediato a situação das famílias mais pobres, mas também para levar as pessoas a buscarem meios de melhorar de vida de maneira consistente. Uma bolsa vinculada à manutenção das crianças na escola faz sentido. Supõe-se que a educação será o instrumento de avanço social.

É exatamente o contrário do que ocorre com o auxílio-maternidade nas regiões mais pobres do interior. Multiplica a pobreza e praticamente obriga as mulheres a permanecerem na pobreza, pois quem pode educar-se e trabalhar tendo um filho por ano?

Finalmente, essa política provoca um aumento permanente da despesa da Previdência. Haverá cada vez mais mulheres (e suas filhas e suas netas) reivindicando o benefício.

Há muito o que mudar. Desde logo, o salário-maternidade deveria limitar-se à mulher empregada que se licencia do emprego para ter o bebê. Para a mulher que não trabalha se pode dar um auxílio, mas limitado.

Os chineses dão prêmio para os casais que só têm um filho - e esta, no caso, não é uma má idéia. Para um filho, um auxílio-maternidade de R$ 1 mil. Para o segundo, nada.

E fica aqui o exemplo de uma situação a recomendar a reflexão sobre a eficácia dos programas sociais.

O IBGE informa que o rendimento médio do trabalhador brasileiro nas principais regiões metropolitanas foi de R$ 1.072 em dezembro. A R$ 380, o mínimo será algo como 35% dessa renda. Pelo interior afora, onde o rendimento do trabalho é bem menor, será a opção econômica mais racional buscar benefícios do governo do que buscar trabalho.


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