terça-feira, 30 de outubro de 2007

Quilombos urbanos

O GLOBO, 29 Out 2007
DENIS LERRER ROSENFIELD
Professor de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Parece ser brincadeira, mas não é. A proliferação de "quilombolas" pelo país afora não conhece mais limites. Quando da Constituição de 1988, eram reconhecidos menos de 100 quilombos no Brasil. Hoje, a estimativa já é de 4.000. Será que estamos diante de um novo período de descobrimentos? Como pode se "produzir" tantos quilombos, inclusive em zona urbana, ao arrepio de qualquer consideração histórica e do uso da palavra quilombo em nossos dicionários?

O artifício foi meramente jurídico. A lei está criando "quilombolas", que se proliferam por todo o país. Não se trata de regularização fundiária de pessoas que já viviam num determinado território, mas de um decreto presidencial, 4.887, de 2003. Segundo este decreto, basta um grupo de pessoas se autoclassificar como negro e se auto-atribuir uma terra ou propriedades urbanas, para que se dê início o seu processo de desapropriação, primeiro, na Fundação Palmares, e, posteriormente, no Incra. Laudos ditos antropológicos são solicitados a ONGs ou a professores comprometidos com a causa dos "movimentos sociais", sem que os proprietários tenham conhecimento do que está acontecendo. A sua triste realidade só se apresenta quando recebem uma notificação do Incra, sem que tenham tido nem o direito ao contraditório.

Exemplo. Num belo (ou num sombrio) dia, o superior da Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, no Rio de Janeiro, recebe uma notificação do Incra de que deve apresentar documentos de suas propriedades para sua defesa, pois a área em que exerce trabalho social, na Praça Mauá, tinha sido reconhecida como quilombola. A intimação do Incra é uma verdadeira intimidação! Kafka, se tivesse conhecido o Brasil, não teria escrito uma obra de ficção: bastaria descrever a realidade!

A Ordem atende, nesta zona portuária, a 1.070 alunos, que freqüentam uma escola, que vai da educação infantil ao ensino médio. É um primor, com crianças rindo, estudando, jogando e comendo. O seu refeitório, com alimentação abundante, serve várias refeições ao dia. Os banheiros, um exemplo de limpeza. Aqueles jovens, negros, brancos, pardos, mestiços e mulatos, são alegres, exibindo a qualidade do trabalho que lá é feito. Algumas dessas crianças são órfãs de pai e mãe. A Ordem está pensando em construir uma casa especial para eles, onde possam ter uma vida digna.

O serviço comunitário engloba todo um trabalho de humanização do bairro, com centro de saúde, creche, aconselhamento psicológico e cursos profissionalizantes. Adultos têm assim chances de refazerem a sua vida, reciclando-se e conhecendo novas oportunidades. Funcionam no local uma biblioteca, uma escola de música popular, uma casa de cultura, uma gráfica, uma marcenaria e uma padaria.

Ora, todo esse trabalho está sendo agora ameaçado. Na origem do processo, 5 pessoas que invadiram uma casa e reivindicam para si 70 propriedades, num valor médio de 250 mil reais. Essas cinco pessoas nem nasceram no bairro. Já obtiverem "laudos" (pergunto-me o que isto pode bem significar), que lhes dão "direitos" a essas propriedades. Os ideólogos da "justiça social" devem estar satisfeitos com esse atentado à justiça, essa sim real, de crianças e adultos das mais diferentes cores. Aliás, o narcotráfico deixa a comunidade em paz. Os "justiceiros" da causa social, não.

A Ordem possui títulos de propriedade que remontam a 1704, além de um documento do príncipe regente, de 1821, que lhe dá "o senhorio directo de terrenos no bairro da Prainha". Paradoxalmente, a Igreja, que tanto fez para a formação deste país, está sendo vítima de suas próprias ações de invasões de terras, sob a bandeira da Comissão Pastoral da Terra.

O ex-PFL, hoje Democratas, ingressou com uma Adin, em 2004, contestando o decreto. Um dos seus argumentos é o de que um decreto não pode regulamentar um artigo constitucional. Do contrário, teríamos atos arbitrários do Poder Executivo, tornados legítimos e legais. Passados quatro anos, esse julgamento até agora não ocorreu. Trata-se de um relevante problema constitucional que não pode ser mais postergado, sob pena de o país enfrentar-se com situações irreversíveis. O STF tem se colocado à altura das maiores aspirações do Brasil. Não esqueçamos que o arbítrio é a face visível do autoritarismo.

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