terça-feira, 2 de outubro de 2007

A sopa de tapuru

CIDADÃO REPÓRTER
Tiago Acioli
Médico da Emergência do Hospital da Restauração e Médico Intensivista da UTI de Infectologia do Hospital Universitário Oswaldo Cruz


'O diabo está tão globalizado que está fazendo até merchandising. Resolveu abrir uma filial do inferno aqui no Recife. Mais precisamente na Avenida Agamenon Magalhães s/n, no Derby. Na fachada colocaram o nome Hospital da Restauração, mas não se engane. Aquilo ali é só um disfarce pra esconder a verdadeira intenção de Lúcifer.
Sou um médico, de 28 anos, fiz residência, fiz concurso público, orgulho da família e empolgado com a minha profissão. Sempre estudando, me atualizando, planejando fazer mestrado e doutorado, ter uma família, sustentar os filhos, ser feliz. Enfim, como qualquer brasileiro procurar o seu lugar ao sol. Amo o que faço, não sei fazer outra coisa, mas quase morro de espanto quando, hoje, percebi que trabalho numa franquia do Inferno.
Não tenho vergonha de dizer que ando sofrendo de depressão, como vários colegas meus também sofrem em segredo. Chego no hospital, vejo a bandalheira geral, pessoas morrem na sua frente, outras em agonia e você está lá, mas não sabe o que fazer. Às vezes falta o básico do básico, falta até máscara! Meus amigos estão se tratando de tuberculose. Uma nova epidemia entre os médicos. A gente adoece também, sabia?Nossos colegas da UTI quando chegam lá na emergência têm a árdua tarefa de 'escolher' quem vai morrer e quem não vai, pois há uma lista de pelo menos 30 pacientes necessitando de UTI e não há vagas. Como é que se faz pra escolher entre 30 pacientes graves quem vai subir pra a UTI e talvez se salvar e deixar os outros 29 que e estão com grande chance irão morrer?
É comum ter pesadelos, é comum ter às vezes uma alteração do humor, ter dificuldades de relacionamento com outras pessoas. Você só vive estressado, dorme mal, ganha mal, arrisca a sua própria saúde. Por quê? Pra quê? Com certeza não é por causa do salário que o governo do estado nos paga.
Ontem vi uma cena digna de uma história de pescador, mas fotografei, tenho testemunhas, posso provar.
Às 22h do dia 26 de julho o Dr. Martinho Medeiros [cirurgião buco-maxilofacial] e sua equipe saíram pra jantar no refeitório do hospital e foram servidos com uma sopa. Ao dar a primeira colherada, ele viu uma iguaria a se mexer na sua colher, era uma larva, um tapuru. Das duas uma: ou contrataram um chef novo na casa que tem tendências da culinária indiana e resolveu criar esse prato exótico, ou realmente estamos vendo que até na cozinha do hospital o diabo tomou conta.
Essa onda de demissão em massa dos médicos de Pernambuco é o resultado de uma insatisfação crônica com as condições de trabalho aviltantes, com esse salário risível que recebemos, com essa piada que se tornou o SUS. Além de tudo somos humanos, temos dignidade e acho que agora estamos em busca do auto-respeito. Por isso, nesta segunda-feira, eu e vários colegas da Clínica Médica do Hospital da Restauração e do Hospital Getúlio Vargas iremos assinar a nossa carta de demissão. Melhor é perder um emprego que perder a saúde, melhor ir trabalhar na Paraíba, se mudar daqui do que ficar aqui nessas condições. Amo muito o meu Pernambuco, mas ando pensando seriamente em migrar daqui, como vários colegas meus já fizeram. Um dia espero que esse inferno acabe e que a nossa sociedade tenha o seu direito garantido. Saúde, direito de todos, dever do estado!'

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