terça-feira, 2 de outubro de 2007

O Corte da Navalha


Por Maria Helena Rubinato Rodrigues de Sousa

“É extremamente triste, para alguém, da minha geração, concordar com uma observação feita pelo general Ernesto Geisel quando, numa entrevista, advertiu aqueles que deploravam o comportamento dos generais: não perderiam por esperar, com o retorno ao poder dos políticos civis.”

Quando os militares chegaram ao poder em 1964, inseridos numa estrutura autoritária de poder, não se pode negar que ao menos acalentassem um projeto autônomo de desenvolvimento nacional, de modernização do Brasil, um ''norte'' claro, preciso e meridiano, com amplos investimentos em infra-estrutura, transportes e serviços essenciais.

Infelizmente, contudo, esse único propósito, esse legado positivo, não teve continuidade nas promessas da redemocratização: toda ênfase recaiu na mera reconstituição formal da democracia política, e não no aprofundamento das reformas estruturais.

Assim sendo, a tão propalada ''redemocratização'' acabou por tornar-se uma desprezível bufonaria, mero ilusionismo ideológico para ludibriar cidadãos desavisados, posto que não moveu sequer uma palha para resgatar a histórica dívida social que estraçalha nosso país, de alto a baixo.

O calamitoso resultado, em veloz metástase de pouco mais de dois decênios, é o que todos de sobejo já conhecemos: um tecido social dilacerado por uma dinâmica endêmica de violência, que está assumindo hoje proporções epidêmicas, sendo cada vez mais alimentado pela desigualdade crescente; um sistema político estruturalmente corrompido até a medula, cujo fito é tão somente reproduzir em moto perpetuo os mecanismos oligárquicos em suas diversas instâncias; uma patológica e devastadora apatia cultural em estágio máximo de degenerescência, agrilhoando amplos setores de nossa gente às piores modalidades possíveis de ignorância; e, por fim, um modelo econômico terrorista e excludente, cuja lógica perversa desmantela as forças produtivas da nação, e condena a esmagadora maioria da sociedade a um futuro no mínimo incerto.

Como frisei anteriormente, nossa redemocratização ficou restrita ao arcabouço jurídico institucional do país, ou seja, à restauração do estado de direito; trata-se de um processo de redemocratização que ainda não permeou as relações sociais em seu caráter mais profundo, o que se traduziria em saúde, educação, habitação e segurança universais. Votar é importante, mas de pouco adianta sem comida na mesa, criança na escola, moradia decente, trabalho digno e paz social.

Hoje, temos poderosos chefões roubando desbragadamente à luz do dia e, o que ainda é pior, jactando-se de seus atos na obscena certeza da impunidade, exibição que humilha tanto quanto o autoritarismo.

Os que alegam sofisticamente um suposto excesso na recente Operação Navalha, da PF, desejam, na verdade, furtar-se ao esclarecimento rigoroso dos eventos denunciados. Nessa hora, o aclamado estado de direito parece não ser tão desejável assim.

É extremamente triste para alguém, da minha geração, concordar com uma observação feita pelo general Ernesto Geisel quando, numa entrevista, advertiu aqueles que deploravam o comportamento dos generais: não perderiam por esperar, com o retorno ao poder dos políticos civis. Faço parte dos que foram ludibriados pela voz maviosa dos que pregavam o fim da ditadura, como se o retorno à democracia, por si só, fosse resolver todos os nossos sempiternos problemas.

É nesse Brave New World que estamos submersos, para mefistofélico gáudio das camarilhas que nos governam, que nada mais fizeram, fazem e farão, do que fortalecer os tentáculos do monstro que ameaça o Brasil, a corrupção.

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