16.11.2007
Um pequeno livro é muito importante para se entender, não só a influência das Forças Armadas sobre a sociedade brasileira, mas a própria sociedade brasileira. Na obra Vida e Morte do Partido Fardado, lançada pela Editora Senac, o professor de Política na USP e jornalista Oliveiros S. Ferreira se mostra um pensador original e um observador agudo, além de, é claro, polêmico.
Ferreira parte da idéia geral de que, na sociedade brasileira, espalhada por um território de dimensões continentais retalhado por agudas desigualdades sociais e regionais, não existe nenhuma instituição, a não ser as Forças Armadas, que tenha ao mesmo tempo uma presença em escala nacional e a possibilidade de desenvolver um projeto estratégico verdadeiramente para todo o território e para toda a população. Cada partido político, cada classe social, seja empresarial, seja de trabalhadores, teria sempre enraizados interesses especificamente regionais que os impediriam de ter uma visão abrangente do todo do país e de idealizarem um projeto realmente para a Nação como um todo.
A partir dessa situação, que, segundo Ferreira, data até mesmo dos tempos coloniais, e levados por sua formação específica, os militares estariam convencidos de que conhecem mais o País e seu povo do que os civis, particularmente mais do que os políticos e governantes civis. A essa situação material – de serem a única instituição de caráter verdadeiramente nacional – acresce que, enquanto a população civil é regida pelos mercados (não existindo ainda um mercado único em escala nacional) e por sua ética, procurando cada civil a "busca da felicidade" por meio do aumento de sua renda, os militares têm desde jovens como referência a defesa da Pátria e sua ascensão na carreira é ditada pela sucessiva assunção de maiores responsabilidades nessa defesa da Pátria, por meio da assunção ao oficialato.
E mais: enquanto os civis vivem numa roda viva de mudanças, por meio da concorrência, nas suas redes de hierarquia, a hierarquia e a disciplina das Forças Armadas, por força da sua própria função, são permanentes e estáveis. O valor maior, para o civil, é a felicidade que pode encontrar na sociedade de mercado; o valor maior, para o militar, é a honra a que pode aspirar numa vida dedicada ao serviço da Pátria. Isso tudo, pelo menos, é o que Ferreira diz.
Se soma a isso o fato de que no Brasil, desde sempre, a par da função de defesa externa, as Forças Armadas também exercem o papel de garantidoras da lei e da ordem. Nos estratos mais altos do oficialato, isso é considerado como implicando a obediência às autoridades do Estado (sejam civis, sejam militares), desde que dentro da lei e da Constituição. Isso seria, na visão de Ferreira, o que chama de Establishment Militar.
Mas, nos estratos mais baixos do oficialato, pode ou não surgir o Partido Fardado, que não é permanente como o Establishment Militar, nem tem objetivos específicos ao longo do tempo, mesmo porque não dura muito – emerge em surtos episódicos, como o veto militar à permanência do conde dos Arcos como governante, em 1821; a proclamação da República, em 1889, e a derrubada do presidente João Goulart, em 1964. Composto de militares que julgam que as autoridades civis e o próprio Establishment Militar, além de não defenderem os interesses do Brasil como um todo, estão imersos na corrupção e na autocomplacência, o Partido Fardado surgia em situações de emergência, como se fossem erupções. Mesmo dividido em facções, por exemplo de direita ou esquerda, o Partido Fardado, quando surgia, acabava chegando a um consenso majoritário e acuava o Establishment Militar para pôr as tropas nas ruas e mudar o poder.
Para isso, no entanto, por uma questão de hierarquia, o Partido Fardado, segundo Ferreira, precisava sempre de um "totem", isto é, da adesão de oficiais de alta patente. O ponto mais alto e o começo do fim do Partido Fardado, de acordo com Ferreira, ocorreram em 1969. Na eleição que foi então realizada, exclusivamente entre os oficiais militares, para se indicar o candidato à sucessão do presidente Costa e Silva e da Junta Militar, ganhou a maioria dos votos o candidato do Partido Fardado, o general nacionalista Albuquerque Lima. Mas o Establishment Militar, usando da hierarquia, e contando só os votos dos mais altos oficiais, indicou o general Emílio Garrastazu Médici.
Mais, ainda em 1969, o Establishment Militar mudou os regulamentos das Forças Armadas, para impedir que um oficial-general fique mais de dois anos em cada posto e fique mais de seis anos como oficial-general da ativa. Isso tem impedido desde então o desenvolvimento de "totens" que consolidem ao longo do tempo a sua liderança e sejam respeitados – de modo que o Partido Fardado morreu, isto é, não pode mais se manifestar.
Essa, é claro, é a visão de Ferreira. Ele finaliza dizendo que, "ao deixar de existir", o Partido Fardado "entregou à hierarquia, à burocracia militar – e isso é importante ressaltar – a tarefa de compreender os problemas do Estado brasileiro", que seriam os problema do "povo". Uma pergunta a que Ferreira não responde, mesmo porque não a faz, é se pode ainda haver novas intervenções militares no País.
Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor do romance-ensaio O mundo como obra de arte criada pelo Brasil, Editora Casa Amarela.
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