quarta-feira, 28 de novembro de 2007

HOMINIZAÇÃO DE DEUS



Bispo Edir Macedo criou o Deus executivo




Arnaldo Jabor
Publicado no Jornal Folha de São Paulo


Em 31/10/95


Cena de Von Helder chutando a imagem de Nossa Senhora é um emblema claro das loucuras nacionais de hoje



Von Helder chuta e dá socos em Nossa Senhora. Mais que um sacrilégio, a imagem é de um infinito poder de síntese. Parece uma bandeira do Brasil. Tem um fundo azul de nitidez insuportável. O enquadramento é bom cinema, parece Godard: frontal, de corpo inteiro, de modo que vemos a santa pequena à altura dos joelhos do bispo que chuta e dá murros. E a cena tem um detalhe genial. A cada chute do bispo a câmera conta para close do rosto da Virgem, como se ela sofresse na madeira escura, como se uma lágrima rolasse. E estão congeladas ali muitas contradições dos tempos que correm.



Von Helder é atualíssimo. É um mix de guarda de segurança com TFP, tem o rosto idiota dos "serial killers". Seu gesto foi um incesto invertido: um matricídio. Tocou no intocável. Ataca a mãe e, por decorrência, a "pátria amada". Ele ataca o misticismo brasileiro "inútil" da Nossa Senhora preta do fundo do rio. Quis ser "moderno" e gritava: "Ela não funciona!". É uma luta pelo mercado. Parece guerra de anunciantes em que uma marca de carro destitui a outra de valor: "Não funciona! Ela é feia, preta, ela não tem valor de mercado. Ela só serve para atrapalhar os negócios com antigas superstições".



É impressionante a quantidade de crimes que esta cena gráfica condensa. Ele fez a metáfora que mostra a verdade da sua seita de charlatães. Ele denunciou a si próprio. Ele foi um ato falho. A imagem é uma mulher. Ele um homem. Ele é grande, ela é pequena. Ela é preta, ele é branco. Ele bate nela porque ela, com o charme desorientador de sua santidade, afasta os fiéis da sua igreja e, mais que isso, ela promete um mundo de paraísos abstratos, longe de uma "igreja de mercado". Ela tem dois mil anos. Ele é neoliberal. Ela foi feita de séculos de loucuras por uma felicidade sonhada. Daí sua aura. Ele não. Ele é um despachante da fé. Edir e Helder são a religião populista contra as religiões populares. São contra as místicas do milênio, contra a beleza da loucura. Só lhes interessa o comércio da loucura.



A Igreja Universal é contra o misticismo como poética do nosso desamparo. Querem acabar com a luz e sombra dos templos, querem acender a luz de neon dos supermercados. Toda a beleza das religiões é exterminada. Odeiam as religiões afro-brasileiras Nossa Senhora da Aparecida é Oxum no candomblé. Edir e Helder odeiam o candomblé porque ele condensa o amor negro do povo e celebra o infinito em lindos rituais de cachoeiras e florestas.



A Igreja Universal é contra o Inconsciente. Diferentemente dos babalaôs, dos bonzos, dos monges, os bispos da Universal odeiam os mistérios. É estranho, uma religião que busca exterminar o sonho: "Não funciona! É mentira! Não há Oxum, não há santos, não há anjos!". Só toleram o Diabo, porque ele é útil nos rituais. O Diabo é o símbolo dos concorrentes. Se pudessem, os bispos da Universal acabariam também com a idéia de Deus, por ser muito abstrata. Ficariam só com Edir Macedo.



Papas Ateus



Ao contrário dos chefes religiosos que acreditam nos mistérios que propagam, Edir e os cardeais da Igreja Universal não acreditam em Deus. Isto é visível nos rituais de exorcismo da TV. Milhares acreditando e só os pastores de cabeça fria. O mistério não é comercial. É uma religião de resultados. Não promete nada no Além, como os católicos. Trata-se de pagar para não sofrer mais aqui. Promete o quê? Promete um paraíso de classe média, de terno e gravata. "Se você, desgraçado, aleijado, pagar o dízimo, você deixará de ser um excluído!"



Por isso, o mercado-alvo da Universal é o "lúmpen", o sub-cão, o pó-de-mico. Não propõem nem o paraíso, nem o sexualizado mundo da floresta africana; prometem o "shopping center". Daí seu sucesso. Mais que tudo, o mundo de hoje odeia a transcendência. Não há nada além do visível. É isso que Helder chuta.



Há igrejas evangélicas que são legais. Muitos convertidos até melhoram. Param de beber e bater nas mulheres. Muitos evangélicos têm amor aos rebanhos. No caso de Edir, não. Não há carinho, nem desejo de ajudar ninguém. Tudo é mentira. Não há nem a caridade do pastor que acredita na própria fé. Isto é que choca: a crueza do extremo egoísmo no uso da miséria.



Quem não viu os rituais de exorcismo na TV não sabe o que está perdendo. É uma visão do inferno que virá. É uma visão dos futuros e inevitáveis extermínios em massa. Centenas de miseráveis que não têm mais nada, sendo espoliados por outros miseráveis, os obreiros, que podem subir para "pastores" e talvez a "bispos", numa pirâmide invertida de horrores, como pilhas de frutas podres no lixo da rua. O demônio se apossa em massa dos desgraçados que são, então, "expurgados" de si mesmos. Isso. Os pobres vão ali para serem exorcizados da própria miséria. Eles são lavados de si mesmos como num campo de concentração. Os pastores gritam: "Queima! Queima!", como se estivessem queimando o diabo. Mas, são os pobres diabos que querem se extirpar da miséria deste mundo. O miserável dá dinheiro em público em grandes sacos e se sente menos miserável. Quem dá, é porque tem. Logo, o pobre se sente menos pobre, dando. O rico é que pede esmola ao miserável. Quem pede a esmola é o dono da TV, dos rádios. Quem paga, é quem não tem, grande metáfora concentrada de nossa pirâmide social perversa. Como o Brasil.



O diabo é o povo



Não é verdade que a Igreja Universal não tenha imagens. Tem. A cena da TV foi de uma imagem viva batendo na outra. Uma imagem atacando a outra. Ou melhor, Von Helder é uma imagem da imagem. Reparem que o bispo Macedo é uma espécie de Deus-Pai, e que todos os outros pastores foram criados à sua imagem e semelhança. Todos copiam o "style" Macedo: terno, gravata, raspadinhos, limpinhos. É isto que eles prometem aos miseráveis: "Se vocês pagarem, serão transformados em nós. Limpinhos, poderão ir ao paraíso da burguesia". Mas, Edir também é a imagem de uma imagem. De quem? Ele é o Deus de gravata, ele é um Papa-executivo, tem algo que Billy Graham, de Chirac, algo de Collor, de Quércia, até mesmo de um Lair Ribeiro. São os ídolos da caretice impecável. Edir cópia a imagem do "clean wasp" americano. O modelo de Edir é o ideal americano de gente limpa, assim se vestem os diretores saxões das corporações, com a indefectível canetinha no bolso. Assim, temos tudo. Deus e o diabo na terra virtual. Deus usa gravata. Deus é o executivo. É o diabo é quem? O diabo é o povo.



Antonio Conselheiro era louco. O bispo Macedo não é louco. Edir é um profeta do futuro mercadológico. Este imenso mundo de excluídos também será um "emerging market", o "lúmpen market". O que vender a eles? O nada. Eles pagam com seus últimos centavos. Edir prova que a exploração não tem fundo; dá para roubar mais sempre, dá para extrair até o sangue dos cadáveres. O pobre paga por si mesmo. Ele é a própria mercadoria. Zero de custo operacional. Será que os americanos já calcularam isso? De tostão em tostão, se faz um milhão. "Good business", vender o nada para o Zaire, para o Sudão, para o Piauí. Vender o quê? Edir neste ponto é um grande empresário: descobriu o reciclamento do lixo humano. Manda para o mundo inteiro um belo produto de nossa exportação. Este o grande milagre de Edir: transforma merda em ouro. Ele próspera na miséria. Ele é a favor da injustiça social.

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