terça-feira, 27 de novembro de 2007

A democracia chavista

CORREIO BRAZILIENSE, 27/11/2007
Jarbas Passarinho
Foi governador, senador e ministro de Estado

Professores de Harvard, nos anos 70 do século passado, dedicaram-se a estudar regimes políticos da América Latina. Analisaram se as instituições derivadas da experiência democrática ocidental podiam ser exportadas ou impostas a países que não partilhavam das condições culturais, religiosas e econômicas do mundo livre. Concluíram que o futuro dos governos democráticos era obviamente incerto, dada a perpétua alternativa entre Estados democráticos débeis e duradouras ditaduras.

Conquistada a independência das colônias hispânicas por libertadores, Sucre, Bolívar, Ó Higgins e San Martin, o território liberto, dos Andes ao vice-reinado do Rio da Prata, foi fracionado em muitas repúblicas, dando margem à aparição posterior dos caudilhos que dominaram seus países em ditaduras unipessoais. Entrementes, o Brasil manteve íntegro o imenso território que herdou de Portugal. A espada de Caxias fê-lo o condestável do Império.

Na Venezuela, uma longa sucessão de ditaduras militares despóticas, entre elas a do general Joaquim Crespo, que se encerrou por morte do ditador. Durante os 46 anos seguintes, quatro ditadores se sucederam. O general Gómez governou despoticamente por 27 anos, de 1908 a 1935. Seguiram-se ditaduras militares até a eleição do primeiro presidente civil, Rômulo Betancourt, em 1958, mas as tentativas de golpes prosseguiram abalando os governos civis. A última tentativa, igualmente frustrada, deu-se no mandato do reeleito presidente Carlos Andrés Perez, liderada pelo coronel Hugo Chávez.

Esse breve escorço mostra, à evidência, que a conclusão dos professores de Harvard estava certa quanto à vocação da Venezuela pelos longos governos militares autoritários. Não deve surpreender que Hugo Chávez seja a reiteração da velha tradição do despotismo, desta vez mascarado de poder democraticamente exercido. Encontrou no comunismo marxista-leninista a afinidade com o poder despótico tradicional no caudilhismo histórico de seu país. Misturou-a indevidamente com o ideal libertário de Bolívar.

O escritor padre Brandi Aleixo, no livro Vision y actuación internacional de Simon Bolívar, lembra a frase do libertador, no Congresso do Panamá, um século antes da criação da Liga das Nações, que “más temia la tirania que la muerte”. Apropriar-se, pois, de um herói libertador das colônias hispânicas para fazer de seu país uma cópia das nações comunistas do século 20 é um paradoxo. Oportunista, inventou o “socialismo do século 21”, deixando a impressão de que seria uma ideologia socialista nova, mas sem dizer qual a diferença com o “socialismo real”.

Em uma das suas arengas, longas como aprendeu com Fidel Castro, mandou publicamente seu povo ler Marx e Engels, de onde se deduz que a ideologia nova que trazia para a América do Sul nada mais é que a reprodução do “marxismo segundo Stalin”. Logo, seu suposto modelo reformador e inovador nada mais é que a reincidência no anacronismo despótico, que espera bater o recorde do ditador Gómez, de 27 anos de duração. Dois caracteres tem a sua doutrina cediça: busca do poder por tempo ilimitado e longo exercício desse poder, sem contestação alguma. Certo de que vencerá o referendo próximo, que emenda a Constituição, de si já limitadora das liberdades fundamentais, Chávez retorna a Venezuela aos tempos da revolução bolchevista de 1917.

Marx escreveu ser a síntese dos comunistas: “A abolição da propriedade privada, origem de todos os males”. O que está no Projeto de Reforma, já aprovado no Legislativo totalmente constituído de chavistas quanto à propriedade privada? Leia-se no capítulo Revolución: “Autoriza-se às famílias sem moradia própria que ocupem as denominadas segundas casas ou apartamentos, começando pelas existentes nas praias, incluindo as que integram clubes”. Em seguida, a autorização inclui os imóveis urbanos. E mais: “Proprietários de uma só habitação serão obrigados a receber famílias adicionais de três membros por habitação, fazendo uso comum com os novos integrantes de todos os serviços da residência. As fazendas e granjas serão transformadas em meios da Revolução”. Caso contrário, passarão a outros produtores rurais que cumpram com o estipulado. “As terras serão exclusivamente do Estado, que pode adjudicá-las a específicos ocupantes, camponeses, que não as poderão vender ou hipotecar, nem transferir, de maneira alguma”.

Visando a controlar todas as pessoas, dá-lhes nova identidade: “Um novo documento de identidade para cada cidadão será posto em vigência, invalidados os atuais. Só a nova identidade terá validade para o exercício de qualquer atividade pública ou privada, inclusive a eleitoral”. O domínio tirânico do povo chega aos hábitos de cada um: “Aos fumantes que apareçam em qualquer das listas contra a revolução, de revogatório ao presidente da República, não se entregará a nova carteira de identidade nem passaporte, a menos que se submetam voluntariamente a cursos de educação, reconheçam por escrito seus erros do passado e cumpram por um período de prova sem papéis de identificação a critério do Estado”.

Petrônio Portela dizia no Senado: “Não brigue com os fatos”. Só o presidente Lula briga com os fatos, pensando que democracia é sucessão de plebiscitos ou referendos numa sociedade em que o direito de divergir é crime. Mais que isso, só exterminando, à moda dos bolcheviques, um sósia de Nicolau II e toda a sua família.

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