quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Constituição violentada


CORREIO BRAZILIENSE, 16/11/2007
Ives Gandra da Silva Martins

Professor emérito das universidades Mackenzie, Unifmu, Unifieo, Unip e das escolas de Comando e Estado Maior do Exército (Eceme) e Superior de Guerra (ESG)

Volto, mais uma vez, a tratar da violência à Lei Suprema, perpetrada por movimentos sociais dos que se autodenominam de “sem-terra”, violência permanentemente tolerada pelo governo federal. Os atentados à Constituição, perpetrados mediante invasões de terras e prédios públicos, não eximem seus executores da responsabilidade por ignorância. Têm eles plena consciência — até porque tais movimentos são dirigidos por pessoas que possuem formação universitária, como é o caso de um economista do Rio Grande do Sul — de que as ações maculam a Carta Máxima. Argumentam, todavia, que, como a lei não lhes convém, não estão obrigados a respeitá-la e podem fazer o próprio direito, usar a força contra o que desejarem, pois, para eles, “a lei e o Estado” são eles mesmos.

Não poucas vezes, os atentados são dirigidos contra o próprio desenvolvimento nacional, prejudicando e destruindo pesquisas científicas cuja realização demandou tempo, investimento e esforço, como ocorreu no campo da biotecnologia, sob a alegação — à luz do profundo desconhecimento sobre a matéria — de que tais experiências não são boas para o país. E como eles são a lei e o direito, são também os que devem dar a palavra definitiva sobre o que é certo e errado, bom ou mau — e não os demais 180 milhões de brasileiros, que estão obrigados a respeitar a lei. Invadem, destroem, atrasam a evolução tecnológica do país e são tolerados pelos áulicos do governo federal, muitos deles saídos da escola de desrespeito à ordem estabelecida.

Tenho sérias restrições a muitas das disposições da Lei Suprema, como aas que criaram uma federação maior do que o PIB; instituíram um Brasil de duas classes sociais, com superdireitos para os detentores do poder e subdireitos para o povo em geral; ou ainda as que permitem o inchaço de um Estado inoperante e o empoleiramento dos “amigos do rei” nas benesses da administração pública, permissiva da escandalosa e confiscatória carga tributária que suportamos.

Nem por isso, faço Justiça com as próprias mãos, deixando de pagar tributos ou atacando os que “representam mal” a comunidade. Num Estado Democrático de Direito, o caminho é outro, ou seja, o da utilização dos meios de comunicação, do voto, das pressões legítimas sobre os representantes, para que reflitam sobre a necessidade de mudança em sua conduta. Nunca fiz o teste das urnas por não ter vocação política, mas nem por isso deixo de lutar contra os desmandos, ou deixo de apresentar sugestões para melhorar o país, em artigos, aulas, livros, conferências.

É assim que se age numa democracia, não podendo o cidadão ser seletivo, escolhendo as leis a que obedecerá por lhe convierem, e as que não obedecerá, por estarem em desacordo com suas convicções. Tais cidadãos têm vocação para ditadores, para os regimes de exceção, em que só cabe a eles próprios — “cidadãos acima de qualquer suspeita” — determinar o que é bom e o que é mau para o povo, sem necessidades de consultá-lo.

Os movimentos dos sem-terra, dos sem respeito à Lei Suprema, dos sem espírito democrático, dos sem vocação para o diálogo, que destroem pesquisas, invadem propriedades, desmoralizam as autoridades até com palavras de baixo calão, são movimentos totalitários que, ou devem se enquadrar na democracia, criando um partido político para a defesa de suas teses e posições político-ideológicas, ou devem ser extintos, com rígida aplicação da lei aos dirigentes e às autoridades que vêm tolerando, há anos, tal comportamento. Sua atitude é incompatível com a democracia e o próprio ordenamento jurídico tem os instrumentos legais para enquadrá-los e puni-los, desde que o governo federal queira. É de lembrar que o Poder Judiciário tem procurado impor a ordem e o primado da Constituição sobre tais maculadores do direito.

Tenho para mim, entretanto, que todos os que foram prejudicados e atingidos por tais atentados ao Estado de Direito brasileiro devem exercer o seu direito, inclusive de responsabilizar a União, visto que muitas dessas invasões foram financiadas pelo Estado mediante repasse de recursos públicos a entidade que nem sequer possui personalidade jurídica para responder por sua má aplicação. Tais recursos, à evidência, estão sendo mal-utilizados por tais aprendizes de ditadores e defensores do “avanço do retrocesso” institucional.

Se a cidadania não for exercida dentro da lei, o Brasil pouco evoluirá. Quando não concordamos com a ordem jurídica positivada, lutamos para modificá-la, mas conforme as regras impostas pela Lei Suprema — únicas que permitirão a prevalência da vontade da maioria, respeitado o direito da minoria de opor-se, também dentro da lei. Qualquer outra visão do problema é comungar com ideais totalitários que pautam, a rigor, a ação de tais movimentos desestabilizadores da paz social.

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