sexta-feira, 28 de setembro de 2007

AO JABOR...

Não Jabor, não entrarei pelo ralo!

Se tive alguma dúvida desde que a mídia bradou seu lançamento, acabo de tomar a decisão irreversível de não assistir ao filme "O Cheiro do Ralo". Nada tenho contra autor, atores ou direção porém, não alimentarei o "marketing" do novo homem, como se fosse a degradação humana uma condição que temos que aceitar silentemente. Negarei de todas as formas que eu puder, acatar que nossas almas tenham apodrecido da forma como querem que acreditemos. Concordo que nosso planeta esteja no olho do furacão, na luta entre o bem e o mal mas cabe a nós dar a direção correta, um futuro decente aos que nos substituirão.

Não e não!! Não desistirei dos valores que trago de infância. Cheguei até a ser uma adolescente rebelde porém, coerente e responsável. Valores estes que a turma dos anarquistas quer que acreditemos que se foi, que acabou e nada restou. Esquecem eles que os povos vivem ciclos entre a degradação moral e o conservadorismo, entre a guerra e a paz.

Cheiro de ralo não senhor, me nego a me ajoelhar para sentir seu cheiro fétido, fabricado por humanos que não reconheço como irmãos.

Prefiro cheirar a terra, esta terra tão abençoada e que ainda não aprendemos a fazê-la frutificar com sabedoria. Eu quero o cheiro do mar, quero o cheiro da água dos nossos rios, mesmo que escuras. Quero cheirar o cheiro que cheirava minha infância, da grama molhada, do excremento do boi nos pastos e até dos porcos que dividiam o curral com mais animais. Sim, bem lembrado, os "porcos" tomaram conta da casa principal. Nada de pessoal contra estes animaizinhos mas, como bem retratado por Orwell em "A Revolução dos Bichos" em sua premonição de um futuro próximo, eis que nos vemos diante da cena.

Em meados do século XX ele já previra que nosso destino seria durante anos, comandado pelos porcos que tomaram o lugar dos humanos. Grande Orwell, tentou nos avisar antecipadamente mas ninguém lhe deu crédito. E hoje eu sei, aprendi a duras penas, que estes porcos enganaram a todos aqueles aos quais se diziam amigos e preocupados com os seus destinos. Que nada, eles, em sua vaidade pessoal, pretendiam mesmo destruir todos os humanos pois seu ódio aos "pensantes" é imensurável. E ainda trairam e liquidaram com os animais que se rebelaram às táticas oportunistas dos porcos.

Mas por favor, não odeiem os porcos, animais irracionais. Temos outros porcos que os estão substituindo e estes se dizem "humanos". Pelo ralo irão os porcos um dia, não os homens de bem!

Ana Prudente


Um fato novo no cinema brasileiro

Arnaldo Jabor

Saio do cinema desamparado. Esta é a palavra: desamparado. Fui ver o filme O Cheiro do Ralo escrito por Lourenço Mutarelli, Marçal Aquino e dirigido por Heitor Dhalia, protagonizado pelo Selton Mello e fiquei assim. Pareceu-me que houve uma conjunção rara entre os autores - entre os quais, Selton Mello - que talvez tenha ido além deles mesmos. O filme se fez também sozinho. A diversidade dos atores, o acúmulo de situações trágicas, cômicas e perversas geraram um algo que costumamos chamar de obra-prima. (Veja deu-lhe três estrelas e classifica-o como “drama de humor negro”). Mas esse filme é muito mais complexo. Cinco estrelas? Como explicá-lo “psicologicamente”? Ou “psiquiatricamente”? Saio do cinema sem saber.
Que deseja esse filme? Pensei em Kafka, em Pinter, em Bukowski, sei lá em quem, e fico com medo de julgar por baixo ou por cima. Enredo? Estorinha? Bem, Selton é um comprador de relíquias e bugigangas que despreza e humilha os clientes miseráveis que tentam se salvar vendendo alguma coisa, e nutre duas obsessões: a bunda de uma garçonete de botequim e um olho de vidro que comprou. Há um ralo no banheiro ao fundo que exala um cheio horrendo que ele cultiva como uma fonte de vida. Tudo se passa em meio a uma cenografia baldia, entre muros pichados e paredes descascadas. Uma alegoria minimalista do nojo do que se passa no País. A cara mais suja de São Paulo nos olha da tela.Terá algum sentido dizer que o filme é “importante”, útil para entender o Brasil, como dissemos diante de Cidade de Deus, por exemplo? Tem sentido buscar sentido numa obra que não pretende se explicar? O filme quer nos “conscientizar”? Claro que não.
O filme não “cabe”; é inclassificável ou desclassificado. Será um “retrato de nossa situação psíquica dentro da esquizofrenia do capitalismo?” Ora...Saio pela Avenida Paulista, louco para chegar em casa como que para me proteger. Na rua, com milhares de pessoas passando de todos os lados, parecia-me que as via pela primeira vez. Senti, digamos, que há uma feiúra (não é a palavra), há talvez uma escrotidão urbana assumida nas roupas, nas caras, nos gestos, há uma poluição existencial incorporada para sempre, uma tragédia ignóbil, pobre, muda, que eu acabara de ver no filme.Volto a me perguntar: que deseja esse filme? Provar alguma coisa? Ele é “critica” ou “produto”? É um filme personagem de si mesmo? Talvez... Que queria Kafka denunciar na Metamorfose? Nada. Queria existir na sua realidade paralela.
Esse filme aponta para o mistério inquietante que a verdadeira obra de arte tem de ter. Não parte de idéias, mas de traumas, de medos, de pesadelos. Encontrar as idéias será tarefa para ensaístas.No entanto, algumas certezas o filme me trouxe (todas do lado do “não”): a primeira é que o “cheiro do ralo” está definitivamente instalado no presente e no futuro que nos espera no País, que não há reforma social ou psíquica que tape mais esse buraco, que não há conserto para o rumo em que as coisas vão e, quando digo “coisas”, são as “coisas” mesmo, a fumaça, o lixo urbano, a falta de dinheiro, a impossibilidade de governar, a estupidez, o crime imbatível, o horror instalado. Não é que o filme “condene” essas realidades como errôneas, ou “desvios”; não - o filme não denuncia, nem é melancólico ou “pessimista”.
O filme abdica de qualquer esperança “sensata”, mas não é desesperado; ele apenas ri e chora por uma vida inevitável, já instalada no dia-a-dia do País, que a elite boçal não quer ver e românticos e acadêmicos, também não. O cheiro do ralo é nosso oxigênio atual e talvez precisemos gostar desse odor, pois viveremos com ele para sempre.Nosso país vai se dividir entre os que conseguirão escapar dessa tragédia parda, suja que já está aí e ignorar o cheiro do ralo e os que terão de se adaptar a ele. E falo de um cheiro dentro de nós, não do lado de fora. E também não falo de miséria, não. Esta é eterna e apodrecerá para sempre, pois ninguém fará nada contra ela. Estou falando dos homens comuns urbanos. Miséria existencial? Talvez, se comparada a nossos ideais iluministas do “bom” e do “sadio”.Penso também que, na ausência de um sentido “geral” do filme, há milhares de subsentidos nos gestos dos atores, nas roupas, nos comportamentos dos tipos e personagens que denotam uma nova moral, um novo sexo, um novo (a palavra “novo” se aplica?) amor, uma solidão assimilada. Madame Satã tem um pouco disso, Cidade Baixa também. De qualquer forma, surgiu um novo cinema aí, melhor dizendo, alguns pontos luminosos apareceram recentemente. Este é um dos mais fortes.
Outra coisa espantosa (sem falar no baixo custo do filme) é que os atores agem como “autores” também. Cada ator traz um drama pessoal estampado na cara, traços biográficos que nos são ofertados cruamente. Aliás, onde se escondem esses atores geniais, longe da TV e do teatro careta? Com exceção do próprio Mutarelli, de Alice Braga, Paula Braun, e Suzana Alves, há tribos de talentosíssimos anônimos na periferia artística de São Paulo e Rio.Esse filme me fez lembrar de um filme fundamental de 68 (ano do AI-5 e nascimento da personagem de Selton) - o Bandido da Luz Vermelha, que adivinhou, profetizou a avacalhação em que vivemos hoje, quase 40 anos depois. E Sganzerla sacou isso, desconfiado do heróico e ridículo suicídio da guerrilha urbana que se iniciava. O Cheiro do Ralo, para além dos petismos, tucanismos e lulismos, também parece prenunciar o que seremos daqui a alguns anos. Os filmes do cinema novo continham uma esperança histórica. Agora, eu diria que há uma tragédia conformada.Apesar de nada mais ter importância (bons tempos em que Terra em Transe mexia na cultura brasileira...), este filme é muito importante sim; mostra que, daqui para frente, talvez precisemos aceitar o cheiro do ralo para respirar.

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